segunda-feira, 2 de setembro de 2013

# 99



O senhor Palomar caminha ao longo de uma praia solitária. (...) Uma mulher jovem está estendida na areia, apanhando sol com os seios descobertos. Palomar, homem discreto, volve o seu olhar para o horizonte marinho. (...) 
No entanto - pensa ele (...) - eu, assim fazendo, ostento uma recusa de ver, eu próprio acabo por reforçar a convenção que considera ilícita a vista do seio, ou seja, instituo uma espécie de soutien mental, suspenso entre os meus olhos e aquele peito (...) Em suma, o meu não olhar pressupõe que estou a pensar naquela nudez, que me preocupo com ela, o que no fundo é ainda uma atitude indiscreta e retrógrada.
(...) Palomar volta a passar diante daquela banhista e desta vez mantém o olhar fixo à sua frente, de modo a que a este aflore com uma imparcial uniformidade a espuma das ondas que recuam, os cascos dos barcos postos em seco, a toalha turca estendida na areia, a pródiga lua cheia de pele mais clara com a auréola castanha do mamilo, o perfil da costa na bruma que contrasta, cinzenta, contra o céu.
Aí está - reflecte ele satisfeito consigo próprio (...) - consegui fazer com que o seio fosse  completamente absorvido pela paisagem e com que o meu olhar não tivesse mais peso do que o olhar de uma gaivota ou de um badejo.
Mas será justo proceder assim? - reflecte ainda Palomar. - Ou isso não será rebaixar a pessoa humana ao nível das coisas, (...) considerar como um objecto aquilo que na pessoa é específico do sexo feminino? Não estarei eu talvez a perpetuar o velho hábito da supremacia masculina, enquistada através dos tempos numa insolência rotineira?
Volta-se e regressa sobre os seus próprios passos. Agora, ao obrigar o seu olhar a percorrer a praia com imparcial objectividade, procede de modo a que, mal o peito da mulher entre no seu campo visual, se note uma descontinuidade, um desvio, quase um sobressalto. (...) 
Creio que assim a minha posição resulta bem clara - pensa Palomar - sem qualquer possibilidade de haver mal-entendidos. E, no entanto, este sobrevoar do olhar não poderia acabar por ser uma atitude de superioridade, um subestimar daquilo que um seio é e daquilo que significa (...)? Lá estou eu outra vez a relegar o seio para a penumbra em que foi mantido por séculos de pudícia sexo-maníaca e de pecado de concupiscência...
Semelhante interpretação vai contra as melhores intenções de Palomar (...)
Faz meia-volta. Com passos decididos, encaminha-se uma vez mais na direcção da mulher estendida ao sol. Desta vez o seu olhar, lambendo voluptuosamente a paisagem, deter-se-á sobre os seios com especial atenção, mas apressar-se-à a considerá-los como parte de um arrebatamento de benevolência e de gratidão pelo todo, pelo sol e pelo céu, pelos pinheiros inclinados, pela duna e a areia e os escolhos e as núvens e as algas, pelo cosmos que gira em torno daqueles cumes aureolados.
Tanto deveria bastar para tranquilizar definitivamente a banhista (...) Mas assim que ele volta a aproximar-se, ei-la que se levanta de repente, cobrindo-se e bufando aborrecida, afastando-se e encolhendo enfastiadamente os ombros, como se estivesse a fugir às molestas insistências de um sátiro.
O peso morto de uma tradição de maus costumes não permite que se apreciem com a devida justiça as intenções mais iluminadas, conclui amargamente o senhor Palomar.


Italo Calvino - O Seio Nu - O Senhor Palomar

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