sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

No momento em que a vida deixa o corpo (# 463)

 

No momento em que a vida deixa o corpo, este pertence à esfera da morte. Lâmpadas, malas, tapetes, maçanetas, janelas. Campos, pântanos, ribeiros, , montanhas, nuvens, o céu. Nada disto nos é estranho.Estamos constantemente rodeados de objetos e fenómenos do mundo dos mortos. E, no entanto, poças coisas nos provocam maior desconforto do que ver um ser humano nestas condições, pelo menos se tivermos em conta quanto nos esforçamos por manter os corpos mortos longe da nossa vista. Nos grandes hospitais eles não são apenas escondidos em quartos privados e inacessíveis; até os caminhos para lá chegar são dissimulados, com os seus próprios elevadores e corredores, e, se entrássemos por acaso num lugar desses, os cadáveres estariam sempre cobertos por lençóis. Ao serem transportados do hospital, são-no a partir de uma saída discreta, em carros com vidros fumados; nas igrejas são velados numa sala sem janelas, durante o funeral repousam em caixões fechados, até serem enterrados numa cova ou cremados no forno. É difícil encontrar um objectivo prático que justifique tudo isto. Os cadáveres poderiam, por exemplo, ser transportados destapados pelos corredores do hospital e daí seguirem em carros normais para, sem que isso representasse um risco para ninguém. O homem idoso que morre durante uma sessão de cinema pode muito bem permanecer sentado até ao fim do filme e, já agora, durante a sessão seguinte também. O professor que tem um enfarte no recreio da escola não tem necessariamente de ser removido a toda a pressa, não faz mal deixá-lo onde está até que o contínuo tenha tempo para cuidar dele, mesmo que isso só aconteça bastante tempo depois. Se um pássaro posasse sobre ele e lhe desse alguma bicada, faria alguma diferença? Aquilo que o aguarda na sepultura será melhor só porque não o conseguimos ver?Desde que os corpos não estejam no meio da rua a impedir a passagem, não há motivo para pressas, pois não podem morrer segunda vez.

Karl Ove Knausgard - A Morte do Pai

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