quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Para o coração, a vida é simples (# 462)

 

Para o coração, a vida é simples: bate enquanto pode. Depois pára. Um dia, mais. Eco ou mais tarde, este movimento propulsor cessa e o sangue começa a fluir até ao ponto mais baixado corpo onde se acumula numa pequena poça, visível do exterior como uma mancha escura e suave numa pele cada vez mais pálida, e isto enquanto a temperatura desce os membros enrijecem e os intestinos se esvaziam. Estas alterações das primeiras horas ocorrem de modo tão lento e inexorável que têm em si algodão ritual, como se a vida capitulasse segundo determinadas regras, com uma espécie de gentlemen’s agreement que os representantes da morte também respeitam, já que esperam que a vida se retire para iniciarem a invasão da nova paisagem. Torna-se então um fenómeno irreversível. Nada pode já deter as enormes hordas de bactérias que começam a espalhar-se pelo interior do corpo. Se o tivessem tentado apenas umas horas antes, teriam deparado com uma resistência feroz, mas agora tudo em volta está calmo, e elas avançam cada vez mais na humidade e escuridão. Chegam aos canais de Havers, às criptas de Lieberkuhn, aos ilhéus de Langerhans. Continuam até à cápsula de Bowman nos rins, à coluna de Clark na medula espinal, à substância negra do mesencéfalo. E chegam ao coração. Este continua intacto mas já não goza do movimento a que toda a sua construção é dedicada, parece um cenário estranho e desolador, como uma fábrica que os trabalhadores foram obrigados a abandonar à pressa, os veículos parados iluminando de amarelo a escuridão da floresta, os armazéns vazios, os vagões carregados sobre os trilhos, estendendo-se em fila ao longo da encosta da colina.

Karl Ove Knausgard - A Morte do Pai

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